segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Pré-Crime e Castigo


O FBI quer acesso às bases de dados biométricas e biográficas dos portugueses que constam no Arquivo de Identificação Civil e Criminal, bem como à base de dados de ADN de Portugal. Isto significa acesso ao bilhete de identidade de todos os cidadãos portugueses bem como registo criminal e informação genética de todos os cidadãos condenados.

Isto, claro, para combater esse inimigo terrível, sedicioso e incorpóreo que é o terrorismo. Em nome do combate a uma entidade inexistente, vendemos a nossa identidade, base fundamental da liberdade pessoal, a um país estrangeiro. Como quando os EUA mandam, Portugal obedece, encontramo-nos na situação humilhante e insultuosa de cedermos, de joelhos, informação sobre a nossa identidade — morada, impressões digitais, nome e fotografia de todos os cidadãos portugueses — sem pedirmos, sequer, reciprocidade.

O acordo completo está na internet (apesar de ao que parece ser secreto), e merece alguma reflexão. A começar pelos cidadãos cujos dados genéticos e registo criminal serão partilhados. Os condenados, naturalmente, bem como, diz o artigo 11.º, todos os que «irão cometer cometer ou cometeram infracções terroristas, infracções relacionadas com terrorismo ou infracções relacionadas com um grupo ou uma associação terrorista», «estão a ser ou foram treinados para cometer as infracções referidas» «irão cometer ou cometeram uma infracção penal, ou participam num grupo criminoso organizado ou numa associação criminosa».

Os cidadãos que irão cometer infracções terroristas. Ou, por outras palavras, cidadãos que não cometeram infracções. Cidadãos que estão a ser, para todos os efeitos, punidos sem qualquer atitude que mereça tal punição.

A fim de combater o terrorismo, elaboram-se listas de pessoas que cometeram crimes, listas de suspeitos que cometeram crimes, listas e listas. As listas da CIA incluem já um milhão de nomes (incluindo alguns suspeitos improváveis); os cidadãos proibidos de viajar são cerca de dez milhares, sem incluir falsos positivos. Acrescentam-se agora listas de cidadãos passíveis de virem a cometer crimes no futuro (Minority Report, alguém?).

E quem decide se os cidadãos «irão cometer crimes»? Com uma redacção elegantemente dúbia, o Acordo esclarece que as partilhas serão determinadas por «circunstâncias particulares que justificam ter razões para crer». Com esta ambiguidade, não sabemos nem quais são as circunstâncias particulares (provas de planeamento de um crime?, relatórios anónimos?, “não ir com a cara do gajo”?), nem quem é que tem de ter razões para crer (tribunais?, polícia?, o Serviço de Informações?).

Por fim, os dados biométricos, que em Portugal devem ser destruídos quando é provada a inocência do acusado, são mantidos nos EUA, onde podem ser usados, por exemplo, para uma condenação à morte. Conclui-se que o «reforço da cooperação no domínio da prevenção e do combate ao crime» inclui a remoção de direitos consagrados pela lei.

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