O Francisco Moita Flores lançou recentemente uma petição. Convida-nos a reunir cem mil assinaturas em defesa da «Festa Brava» (aquela festa de sangue em que se reúnem multidões para ver uns cavaleiros espetar lanças num touro sem qualquer objectivo aparente além do gáudio de ver o bicho sofrer).
Em defesa da Festa Brava e não só. Também em defesa de mais um chorrilho de coisas tiradas não se entende bem de onde: em defesa «da Terra, da Vida e dos ritos exorcizadores da Morte (…), dos animais, dos touros, dos cavalos, dos pastores e dos campinos, da economia agrícola e animal (…), do progresso com Memória (…), do desenvolvimento sem perder o sentido da História» … Ao menos é abrangente. A questão é que defender a História e a Terra e a Vida e não sei que mais parece exigir que se torture um animal. Eu não consigo ver bem como, mas também não espanta já que aparentemente pertenço àquela «horda de analfabetos» a que ele se refere.
Analfabetos e, ao que parece, «talibãs». O mau gosto de comparar um grupo de pessoas que preferiam que os touros não fossem maltratados a uma organização teocrática violenta parece passar ao lado do Francisco. Depois desta, aguardo ansiosamente a comparação com a Alemanhã nazi que deve estar para um dia destes. Ou quaisquer outras acusações infundadas e insultuosas que lhe aprouver fazer.
Começa a petição por um resumo da vida do Francisco. Totalmente irrelevante, mas que isso não impeça algumas linhas de prosa exagerada e auto-indulgente sobre como ele assistiu a tanto sofrimento («o sofrimento mais pungente, de tragédias inimagináveis, de lágrimas feitas de tanta dor que não havia consolo»). Talvez isso tenha feito o Francisco indiferente ao sofrimento dos touros? Afinal de contas, ele escreve «Aprendi nos campos alentejanos a ser aficionado» — nada mais correcto: «aprendeu». Aprendeu, porque ver alguém a espetar lanças num animal é um gosto adquirido. Porque o ser humano, dotado de empatia, é adverso ao sofrimento, de tal forma que nenhuma criança tabula rasa pode gostar de ver uma tourada. Tem primeiro de «aprender» a ser insensível ao sofrimento do touro. Tem de «aprender» a ser cega, a não reconhecer que há um problema em maltratar um animal por diversão. Só dessa forma pode tornar-se um aficionado — e a seu tempo, insensibilizar as suas próprias crianças.
É claro que o Francisco não confirmaria o meu argumento de que o toureiro tortura animais «por diversão». Segundo ele, a Festa Brava não é só para divertimento: é, isso sim, pela História, pela Terra, pelos Homens, pelos Animais, pela Natureza e por outras coisas com inicial maiúscula. É pela tradição: de Creta, de Esparta e de Roma (presumo que a ressurreição dessa tradição que é os circos de morte romanos também deva interessar ao Francisco. Em nome da consistência do argumento, naturalmente.) Aliás, a tourada, diz ele, «integra o psicodrama essencial do Homem», que parece que é uma coisa importante. Em suma, há que preservar a «dimensão trágica do simbólico enredo taurino».
Certamente, Francisco. Preservemos o psicodrama e o enredo simbólico. Preservemos a tradição. Preservemos a simbologia dos senhores vestidos a rigor, a montar a cavalo na praça brandindo bandeirilhas e correndo atrás de touros. Mantenha-se, enfim, a estética tradicional e artística que o Francisco tanto preza (e bem!). O que não é preciso é andar a espetar ferros nos bichos só por causa disso!
O Francisco concentra-se depois na ecologia. Se por um lado nós, produto da cultura urbana, estamos alienados da Tradição (e dos psicodramas essenciais e dos simbólicos enredos), por outro também partilhamos de um inconsciente culpado pela degradação ambiental da Urbe, que procuramos apaziguar lutando «por adereços.» Com esta fabulosa peça de pseudo-psicologia, o Francisco desconsidera do pé para a mão não apenas os grupos anti-tourada, mas também os «diferentes nichos (…) em defesa do lince, em defesa do lobo, em defesa da água».
O que é que ele quer tirar daqui, ultrapassa-me. Toda esta argumentação parece destituída de qualquer significado racional. Aparentemente, a coisa ecológica a fazer, «que afirme o respeito pelos Direitos do Homem casados e em sintonia com os Direitos da Terra», é deixar o lince e o lobo morrer e a água esgotar-se. Vá-se lá entender…
Mas prosseguindo. As touradas, diz o Francisco, é que afirmam o tal respeito pelos Direitos do Homem e pelos da Terra. E é verdade que o touro bravo é criado em montados, mas esse ecossistema é valioso independentemente da presença do touro bravo, graças à procura de cortiça e animais de pasto. A tourada não é necessária, portanto, ao ecossistema — nem ao touro bravo, uma variante de Bos taurus, que está muito longe do perigo de extinção. E mesmo que se insista na manutenção desta variante (o que não deixa de ser hipócrita, visto que o Francisco parece considerar irrelevante a preservação do lince e do lobo, que são espécies por direito próprio), a subsistência do espectáculo e da imagética tradicional da tourada permitirá o rendimento para a criação de santuários onde esses animais sejam mantidos em conforto, longe do perigo de extinção. O que é deprimente é mostrar o amor pela natureza espetando ferros nos touros…
A seguir, o Francisco acusa o sector anti-tourada (ou, porque vale sempre a pena manter o ad hominem gratuito, os «fundamentalistas beatos») de nos preocuparmos com as touradas e não nos manifestarmos contra a indústria alimentar — ou contra a guerra, ou contra a violência doméstica. O que é simplesmente mentira, claro. Mas que interessa o facto de fazermos protestos contra todas essas realidades? Não interessa, visto que a retórica resulta melhor quando aliada à mentira, e na escrita do Francisco isso vê-se com toda a clareza.
Contudo, imaginemos que ele tinha razão. Que, de facto, um sector significativo da população se preocupa com as touradas, sendo ao mesmo tempo cego a outras formas de sofrimento. Mesmo nessa situação hipotética, continua a ser verdade que, só porque é imoral causar sofrimento na indústria alimentar, ou no campo de batalha, isso não faz com que seja mais moral causar sofrimento na praça de touros. Lá porque a violência doméstica é problemática, não quer dizer que a tourada passa a ser aceitável. É evidente que há muitas coisas por melhorar, mas uma dessas coisas é a proibição das touradas. Não há nenhum motivo para que seja a última!
É claro que toda a minha argumentação parte do facto básico da Biologia de que o touro é um mamífero, dotado pela evolução de um sofisticadíssimo sistema nervoso central e, como tal, se lhe espetam lanças, sofre. Sendo contra a Constituição — e contra as mais básicas noções éticas — causar sofrimento sem necessidade, conclui-se sem grandes dificuldades lógicas que espetar lanças em touros é errado. Mas o Francisco consegue fazer isto parecer uma autêntica proeza lógica. Só assim se explica a sua pérola da semana passada: «O argumento do sofrimento do toiro é uma questão patética.»
Enfim: Patetices…
Um grande texto.
ResponderEliminarO Francisco Moita Flores que vá escrever os seus romancezinhos e novelazinhas para o seu feudo (a Câmara de Santarém). Grande TEXTO!
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